Os doidos Tudo é alegre, á entrada: flores e arvores. D'ali a nada,—da porta para dentro parece já que passou o outomno por cima da primavera d'aquelle jardim!... Apagam-se as côres, escurece o céo, ouve-se estalar a casca das arvores... Principiam as physionomias a transtornar-se; já os olhos não são outra cousa{6} senão buracos luzidios; cavam-se as faces, parecem caretas os sorrisos, não teem os gestos significação, as feições são vagas, a fórma tem contornos indecisos; tudo são personalidades phantasticas, existencias ficticias; linguagem que não se entende; gente estranha, que dá idéa dos habitantes da lua!... Alguns dançam, e cantam; e passa a tristeza n'aquella alegria, e transpõem-se effeitos de claro escuro na musica e na voz delles, envolvendo-lhes a idéa como n'um crepusculo!... Parece que se estão avistando ali as visões de Swedenborg, aquelles espiritos do ar que conversavam uns com os outros e que se entendiam pelo piscar dos{7} olhos... Como essas taes conversas no fundo das nuvens, assim é desusado e insolito quanto por lá se ouve! Ás vezes chega a parecer-nos que é natural tudo aquillo; que o ser como nós somos e portar-se como nos portamos—é ser affectado, é ser pedante; que assim como na natureza tanto ha sensitivas como ha cevada e centeio, assim deve haver nas creaturas sentimentos complexos que a linguagem vulgar não poderia dar; que são elles quem tem juizo; melhor do que juizo, talento: a finura, o guindado, a quinta essencia do espirito; que em nós ha simplesmente mudança de convenções; que elles estão mais perto do{8} estado natural; que tudo vae da maneira de ver as cousas e de as julgar; da opinião dos homens e do genio e moda dos tempos; que tambem o amor já foi outro quando inspirava as filhas dos patriarchas a dar de beber aos pastores; e depois, na Illiada, quando levava Helena ao leito nupcial de Páris; na Grecia, creança a quem ensinavam gracinhas anacreonticas; ébrio, nas orgias de Roma; na idade media, fada, estrella, anjo; mais tarde tendo azas como os desejos; e sendo hoje um casamento commercial, um dote de noiva, cem contos de réis em inscripções!... Assim chega a pensar-se ali, que a vida, que é um entrudo, tambem{9} varíe de mascaras, de modas, de elegancia e de fallas; e que o estylo dos pobresinhos doidos, comquanto diverso do dos tempos em que vamos de tanto tino e conceito, seja talvez mais subtil, mais colorido, e mais exacto
Os doidos Tudo é alegre, á entrada: flores e arvores. D'ali a nada,—da porta para dentro parece já que passou o outomno por cima da primavera d'aquelle jardim!... Apagam-se as côres, escurece o céo, ouve-se estalar a casca das arvores... Principiam as physionomias a transtornar-se; já os olhos não são outra cousa{6} senão buracos luzidios; cavam-se as faces, parecem caretas os sorrisos, não teem os gestos significação, as feições são vagas, a fórma tem contornos indecisos; tudo são personalidades phantasticas, existencias ficticias; linguagem que não se entende; gente estranha, que dá idéa dos habitantes da lua!... Alguns dançam, e cantam; e passa a tristeza n'aquella alegria, e transpõem-se effeitos de claro escuro na musica e na voz delles, envolvendo-lhes a idéa como n'um crepusculo!... Parece que se estão avistando ali as visões de Swedenborg, aquelles espiritos do ar que conversavam uns com os outros e que se entendiam pelo piscar dos{7} olhos... Como essas taes conversas no fundo das nuvens, assim é desusado e insolito quanto por lá se ouve! Ás vezes chega a parecer-nos que é natural tudo aquillo; que o ser como nós somos e portar-se como nos portamos—é ser affectado, é ser pedante; que assim como na natureza tanto ha sensitivas como ha cevada e centeio, assim deve haver nas creaturas sentimentos complexos que a linguagem vulgar não poderia dar; que são elles quem tem juizo; melhor do que juizo, talento: a finura, o guindado, a quinta essencia do espirito; que em nós ha simplesmente mudança de convenções; que elles estão mais perto do{8} estado natural; que tudo vae da maneira de ver as cousas e de as julgar; da opinião dos homens e do genio e moda dos tempos; que tambem o amor já foi outro quando inspirava as filhas dos patriarchas a dar de beber aos pastores; e depois, na Illiada, quando levava Helena ao leito nupcial de Páris; na Grecia, creança a quem ensinavam gracinhas anacreonticas; ébrio, nas orgias de Roma; na idade media, fada, estrella, anjo; mais tarde tendo azas como os desejos; e sendo hoje um casamento commercial, um dote de noiva, cem contos de réis em inscripções!... Assim chega a pensar-se ali, que a vida, que é um entrudo, tambem{9} varíe de mascaras, de modas, de elegancia e de fallas; e que o estylo dos pobresinhos doidos, comquanto diverso do dos tempos em que vamos de tanto tino e conceito, seja talvez mais subtil, mais colorido, e mais exacto